Hoje é um dia especial. Minha mãe, depois de anos distante, física e emocionalmente, pediu desculpas por todos os erros que cometeu comigo e com meus irmãos. Prontamente, eles responderam que ela não deveria se desculpar e que a amávamos muito. Quando vi a mensagem enorme, não soube como reagir. Sabe aquele frio na barriga ao cutucar uma ferida meio cicatrizada? Foi isso que senti ao abrir o grupo intitulado “Filhos”.
Minha mãe é uma figura controversa na minha vida. Sempre a amei, mas nunca entendi por que não recebia o afeto de volta. Ela viveu 14 anos com meu pai — não consigo imaginar o sofrimento. Meu pai era agressivo quando bebia, embora passivo e lacônico quando estava sóbrio. Mas de uma coisa eu sabia: ele não batia nela quando eu implorava — eu era a filhinha do papai. Cresci assim, com uma dinâmica familiar conturbada e frágil. Logo que fiz 8 anos, eles se separaram, finalmente.
Embora longe do ex-marido tóxico, minha mãe foi obrigada a conviver com outra pessoa difícil — minha avó. Uma senhora amargurada, que via defeito em absolutamente tudo que ela fazia. Foi uma época complicada. Minha avó escondia comida, acusava-a de roubo, me fazia de empregada e não conseguia externalizar nada que fosse positivo. Relembrando esse passado não tão distante, me apego à ideia de que esse ciclo poderia ser quebrado, mas não é simples consertar uma mulher adulta flagelada por anos de ódio por sua mãe.
Comentei que ela cometeu erros comigo e com meus irmãos. Pois bem, por conta dessa ausência afetiva por parte da minha avó, ela não gostava de demonstrar afeto e, muitas vezes — na maioria delas —, era fria com seus quatro filhos. Depois da separação, somente a filha mulher, no caso eu, foi viver com ela. Mas a depressão pós-separação fez com que ela faltasse para todos. Emagreceu muitos quilos, sofreu com transtorno alimentar e chorava diariamente. E eu, com 8 anos, presenciava tudo.
Confesso que sempre tive pena dela, mas isso não justificava deixar a filha sem alimentação ou permitir que fosse maltratada na casa dos outros. As disputas com a matriarca da família eram sempre as mesmas: “Não gostei de você vivendo sua vida livremente, deveria voltar àquela redoma patriarcal onde vocês viviam”. Bem, ela nunca disse isso, mas acho que era exatamente o que queria expressar.
Corta para 2022. Elas já tinham se distanciado bem mais, e eu passei a adolescência jurando que não era amada pela pessoa que me pôs no mundo, assim como ela. Certa vez, minha mãe viajou — tinha dessas — indo visitar um tal namoradinho que conheceu pela internet e, do absoluto nada, ele veio morar com a gente. Não mencionei, mas ela é impulsiva, então já sabia que aquilo ia dar errado. Antes eu estivesse errada.
Eu era a criança que cuidava de uma adulta. Consolei-a todas as vezes que ela se sentia para baixo e sabia que consolaria de novo. Dito e feito. Ele a traiu com uma moça que frequentava nossa casa, ia às festas de família e tudo. Ele não era da nossa cidade, nem do estado. Minha mãe o trouxe e o apresentou até para minha avó, e ele a humilhou publicamente. Acho que o dedo podre eu não herdei.
Após a exposição, a depressão voltou e, dessa vez, mais forte. Ela tinha direito a três meses de férias e decidiu viajar. Me deixou sozinha com quatro gatos e nem um real para me bancar. Foi difícil. Não tinha notícias dela e tive que lidar do meu jeito. Os vizinhos me perguntavam sobre ela, e o aluguel estava atrasado. Novamente, tive que ser a criança grande que sempre fui. Passaram-se três meses e nada dela voltar. Foi quando tomei coragem e perguntei se ela voltaria. A resposta não poderia ter sido mais dolorosa — não.
A partir desse momento, com 17 anos, tive que tomar as rédeas da minha vida. Sofri demais sozinha e odiei minha mãe por mais tempo do que conseguia imaginar. Não conseguia olhar com empatia. Como alguém coloca a filha numa situação dessas? Achei que nunca fosse perdoar.
Hoje, após ler e me esgoelar chorando, entendo as razões que colocaram minha mãe naquela situação. Mas só conseguia sentir ódio. Me debrucei sobre livros de autoras que falam sobre relações conturbadas com a mãe, como Os Abismos e A Pequena Coreografia do Adeus. Acredito que a leitura — e a terapia — me fizeram perdoar antes mesmo de ela decidir pedir perdão. Perdoar, mas não esquecer. Esse era o lema dela. E quem diria que eu faria desse o meu também? Mesmo após tudo, termino de percorrer meus olhos sobre a mensagem escrita com erros que só uma pessoa emocionada escreveria e respondo com convicção: “Te amo, mãe. Eu te desculpo”.
Wild women don't get the blues But I find that Lately I've been crying like a Tall child - Mitski